De Azenhas do Mar com (algum) desgosto

 

Arq. Francisco Castro Rodrigues

 

1.   Do Património Construído

      Permita-se-me começar pelo que me é mais grato e acessível.

      Azenhas do Mar é lugar paradigmático das profundas alterações que o tempo e os humanos impõem à Natureza, descaracterizando terras e povoados. Aldeia milenária mas afastada dos centros de decisão, alguns dos seus males são aí desconhecidos. Vem, contudo, nos mapas e é citada em tudo o que de turismo trate. Como exemplo, destacamos um boletim dos CTT, o "Clube do Coleccionador", que dá a imagem das arribas e suas azenhas numa gravura do século XV — invertida, por sinal. Ali se vê o transporte do produto das moendas para o povoado, em carreiro público, hoje cortado.

      De azenhas — os nossos moinhos de água — teriam existido umas seis, três das quais ainda vi trabalhar e outras duas, em ruínas, por sinal exemplares raros na Península Ibérica, porque de roda dupla.

      Deste património resta pouco. Há o complexo do "Palácio" obra reconstruída após o Terramoto, ao estilo pombalino, quiçá sobre fundações moçárabes e hoje em parte, mascarado à moda nacional-neor­ri­quista.

      Na verdade, porém, o "verdadeiro Palácio", ficaria ao lado, na casa nobre da grande propriedade rural hoje atafulhada de construções "ad hoc" e onde se ostenta ainda placa evocativa da estadia real de D. Maria e seu consorte esposo.

      Outro exemplo de arquitectura genuinamente saloia é a "Casa do Maceta", velha residência de família antiga e abastada, do século XIX — se não mais — e onde estaria uma das seis azenhas. Por suas características e integração no local foi motivo de uma bela aguarela de Paula Campos, adquirida pelo Museu Nacional Grão Vasco, em Viseu.

      Ainda deste período temos o corpo principal da antiga propriedade dos Palma, recuperada com muito carinho e saber, inscrita num conjunto mais recente mas perfeitamente integrado.

      Há, também do século XIX a antiga casa de Alfredo Correia, o "Galo Branco", assim chamado porque sempre vestido de branco. Conhecido por "agulha e dedal", o palacete devia a alcunha ao seu torreão gracioso e elegante, adoçado ao bloco maciço da residência senhorial, com telhado pontiagudo e esbelto, agora arrasado e substituído por orla de ameias à maneira do Castelo dos Mouros.

      Em abuso de oportunidade, lança-se aqui

um alerta, pois há possibilidades de se ver destruir o único sinal cultural desta terra, com a construção ali de um "posto de transformação" da EDP (ou REN, não sabemos) mas cuja localização definitiva cabe à Câmara Municipal decidir.

      É curioso lembrar que o "sítio" é um monumento — o Banco Memória — ao Mestre Emílio de Paula Campos (1884-1943), residente notável e que muito contribuiria para o conhecimento da região através de seus quadros e acção de projectista. O Museu Regional de Sintra tem alguns — oferta nossa — é há outros no Museu de arte Contemporânea, em Lisboa; já se citou o de Viseu, entre muitos outros em galerias particulares.

      O monumento simples, como era Paula Campos, louva a acção do Professor e reformador do Ensino Técnico Oficial, criando as duas únicas Escolas do país, de Arte Aplicada, uma em Lisboa, a António Arroio, outra no Porto. Foi erigido por projecto oficialmente aprovado — e de autor — para um pequeno espaço triangular junto ao largo que já fora chamado "de Paula Campos"; foi iniciativa de antigos alunos, artistas e amigos.

      Paula Campos fora o professor da geração de artistas dos mais notáveis entre nós e que — honra lhe seja — nunca esqueceram o mestre.

      A autorização para a construção foi condicionada: manter o terreno limpo e a árvore então existente e passar à propriedade do Estado, quando concluído.

      Contudo... aí veio a construir-se retretes públicas (!), uma cabina telefónica e um abrigo metálico para passageiros de autocarros, que o tempo e a maresia derrubaram. Hoje, em substituição, foi bem colocado um outro, enfim, aceitável por que útil.

      A "estoria" não acabou pois veio a construir-se ali a caricatura de uma azenha, qual "Portugal dos Pequeninos" e a 100 metros da velha, a autêntica, que só precisava de uma restauração. Talvez por isso veio a ser, com algum escândalo local, transformada num restaurante...

      Finalmente, há dias, vem um técnico ao que se julgou, da EDP mas que é da Câmara, àquele mesmo local: escolhera-o para implantar um posto de "transformação". Alguém, dos acompanhantes, estupefacto, exclamaria:

      "— Aqui?! Então e o monumento?"

      A resposta veio célere:

      "— Deita-se abaixo!" — E "prontos".

 

<< - Anterior  Pág.Inicial  Seguinte - >>