ALMOÇAGEME – UMA VENDA À BEIRA DA ESTRADA

Luísa Laborde

 

Almoçageme, St. André, curva da estrada que vem da Várzea de Colares e segue para a Estrada do Rodízio, a caminho da Praia Grande, ou em direcção a Cascais pela es­trada da serra. Fim de semana ou feriado. Um mar de cores, um mar de gente a que vende, a que vem comprar. Os produtos, hortícolas e fruta, na sua maioria, embora se encontre também flores, pão, doces, até cestaria, estão dispostos consoante a capa­cidade de venda de quem os expõe, desde pequenas mesas, sacas, alcofas e cestas, abrigadas sob chapéus de sol, até às grandes bancas debaixo de toldos. É a "Venda" de Almoçageme, curiosamente também desi­gnada por "Mercado Saloio", "Mercado 25 de Abril" e "Estrada Nova" é frequente ouvir-se, entre os locais, "ir às compras à estrada".

Percorrendo esta Venda nas horas de maior bulício, pode ocorrer uma pergunta: Como foi o seu início?

Para obter uma boa resposta, nada melhor do que fazer uma pequena incursão no passado, recorren­do à excelente memória de um casal de vendedo­res, ambos na casa dos oitenta. Oiçamos a D. Umbelina:

"Não havia aqui a venda, era na Volta do Salgado passa-se a Arriaga, o Pé da Serra, de­pois é lá em cima. Há cinquenta anos, ali é que eu ia vender doces, fazia bolos, eram uns limões... O transporte eram cabazes, era nos braços, íamos os dois car­regados, o meu marido e eu. Depois já era muito peso. Então vínhamos ven­der naquela fontezinha, em Santo André: a minha mãe, a Sr.ª Júlia que vendia flores tinha um burro que vinha car­regado com as flores e uma velhota que eu nem sei o nome dela, chamavam-lhe a Mulatona. Depois é que se abriu a estrada* e então fomos para a estrada, onde estamos agora a vender. Depois vieram outros. Um homem que hoje tem cem anos ia para lá vender ginjas."

"Houve certas coisas que acabaram e já não voltam acrescenta o Sr. Alfredo. Cheguei a levar lá para baixo alfaces de quatro e cinco meses, que me sobravam. Eu criava coelhos e criação para ter estrume para pôr nas alfaces; agora, fazem alfaces em mês e meio e até em menos, tudo à força de químicos. Por isso é que eu digo, não se pode viver daquilo. Às vezes há pessoas que me dizem «Ah! você, com 83 anos, com esse aspecto, parece um jovem, pois, come coisas boas...».

Mas depois, se não for fruta bonita, já não querem comprar. As pessoas compram o que vem de fora, ao que é de cá não dão o valor que deviam dar."

São vozes do presente, com nostalgia do passado.

Actualmente, sendo embora produtores,

muitos têm licença de compra e venda; outros têm apenas um documento, emitido pela Junta de Freguesia, referente a produtos de sua própria lavra.

Decerto se poderão adquirir muitos produtos idênticos noutros locais, mas o facto é que esta Venda atrai compradores, num fluxo per­manente, de manhã ao fim da tarde. Uns serão atraídos pelo colorido ou pela oportunidade de comprar produtos "da terra"; ou­tros obedecerão à necessidade compulsiva de com­prar, tão actual... No entanto, para muitos, já, é o reencontro semanal com alguém conhecido, em cuja honestidade se confia, são minutos de conversa amiga.

Depois, há o mar, tão perto, a escassos qui­lómetros. Há a Serra de Sintra, irrecusável no percurso da vinda ou do regresso. Vir à Venda equivale a passear, trazer as crianças para o ar livre, em alternativa ao ar viciado e ao convite ao consu­mis­mo dos Centros Comerciais. Aqui, o apelo virá do cheiro a pão fres­co, das cores que prometem frescura e sabor.

Mudam-se os tempos... Já morreu o último natural de Almoçageme que usava barrete saloio; onde costumava pastar um burro com os alforges carregados de flores existe agora uma loja de artesanato. Mas... talvez nem tanto se tenham mudado "as vontades". O que move as pessoas, na sua busca, consciente ou não, de reencontro com a natureza e de relações humanizadas, será a salvaguarda das suas raízes, da sua identidade e da sua humanidade, que sentem ameaçadas.

Provavelmente, em 2007 a Venda não estará mais na curva da estrada, tendo sido reins­talada num terreno fronteiriço, com melhores con­dições para os vendedores. Mudam-se os tempos... O que esperamos que não mude é a convivialidade entre as pessoas, o que certa­mente não muda é a sua qualidade de património vivo, memória e testemunho de uma ruralidade que tem caracterizado a região saloia e o viver das suas gentes...

*  Variante à E.N. 247 construída na primeira metade da década de 70, entre Casas Novas e Santo André.

 

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