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entre tantos outros —, emprestam-nos os seus olhos para, através deles, contemplarmos a realidade. E tanto mais nos sentimos identificados com essa mesma realidade quanto a nossa própria observação coincida com os parâmetros culturais previamente adquiridos, acreditados — e tantas vezes sonhados. Pelo contrário, a inesperada dissonância causará perplexidade e incómodo. O sonho desfaz-se e a desilusão penetra profundamente o visitante. Algo morre dentro de si. Como morto — ou desvirtuado, ou subvertido — se encontrará já, porventura, o genius loci do objecto, do sítio em causa. Como actuar, pois, para preservar, para manter viva essa componente imaterial, esse património intangível — a ‘alma’ de um sítio? Em primeiro lugar, torna-se imperioso compreendê-la, interiorizá-la, quer a nível dos seus traços preponderantes, quer quanto a outras diversas facetas mais obscuras e discretas que, no entanto, lhe matizam e melhor definem a sua personalidade própria. Para tal importa não só analisar detalhadamente o bem patrimonial em causa, em todas as suas vertentes materiais, necessariamente solidárias e complementares, procedendo a uma minuciosa observação directa, procurando desvendar o real-imaginário que se esconde por detrás das aparências, meditando as produções literárias e artísticas eventualmente inspiradas por aquele objecto, por aquele local, sondando ainda as simples opiniões de quem comummente o usufrui e os consensos pouco a pouco assim estabelecidos. Em última análise, deverá o futuro interventor deixar-se também ele penetrar pelo "espírito do lugar", esquecendo por instantes os seus saberes científicos e técnicos — e, mais ainda, as modas e tendências culturais do momento —, predispondo-se, tanto quanto possível, à apreensão de ‘sensações puras’. Deverá também deixar passar algum tempo, amadurecer as ideias, as emoções, e agir sem pressas, imbuir-se do ritmo do próprio lugar e não se precipitar em função de pressões de mercado ou de calendarizações políticas. Uma acção impensada, inadequada e superficial, poderá prejudicar mais um bem patrimonial do que largas décadas de simples abandono; poderá fundamentalmente prejudicar, entenda-se, a sua componente imaterial, a sua dimensão sensível e vivencial.
Acreditamos que na recuperação e valorização de um monumento, de um centro histórico, de uma paisagem, o interventor revela a sua ciência, ponderação, maturidade e qualidade na ordem inversa da visibilidade das marcas que vier a deixar na realidade patrimonial e ambiental pré-existentes, perante o observador comum.
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Em questões de património histórico e ambiental, à inteligência e ao saber ter-se-á necessariamente de aliar a humildade, a serenidade e a independência de pensamento. Decerto que arquitectos, paisagistas e outros terão múltiplas ocasiões, ao longo das suas carreiras, de inovar, de mostrar a sua força criativa, de transmitir as suas mensagens personalizadas como artistas e como homens, de marcar o seu cunho na roda do tempo. Mas não — decididamente não — ao actuar sobre o legado patrimonial. Aqui, as intervenções deverão ser minimalistas e forçosamente condicionadas não só pelas especificidades materiais dos bens, mas ainda — e, arriscaríamos a dizer, principalmente — pelas suas especificidades ambientais, pelo seu genius loci. Esta é fundamentalmente, como já referimos, uma preocupação da nossa época e, como tal, desde há alguns anos tem ocupado o centro das discussões nas principais sedes pensantes que se ocupam das questões do Património, da Cultura, do Ambiente e do Homem de forma interactiva – como a UNESCO. E é uma preocupação da nossa época porque a preservação da dimensão imaterial de um objecto artístico, de um local histórico, se prende hoje com o próprio equilíbrio psíquico e afectivo do indivíduo e, em derradeira análise, da própria sociedade. Vivemos num contexto cada vez mais permanente de não-lugares, de espaços indiferenciados e desumanizados; vivemos cada vez mais sob a pressão dos instantes que se escoam e não mais regressam, das horas e dos anos que passam céleres e se esfumam como nuvens sopradas por um vento constante e implacável. Os monumentos, os centros históricos, as paisagens, são algumas das principais âncoras que nos restam. Mas apenas se o sonho que sobre eles construímos não se desfizer; apenas se nós, interventores do Património, soubermos manter viva — e mesmo, porventura, revivificar — a personalidade própria de cada sítio, a sua alma mater. |