A CONSERVAÇÃO E RESTAURO DO PATRIMÓNIO:

MANIFESTO EM PROL DE UM ORGANISMO COM ALMA

QUE IMPORTA MANTER VIVA

 

José CARDIM RIBEIRO

«Poor, paltry slaves! yet born 'midst noblest scenes

– Why, Nature, waste thy wonders on such men?

Lo! Cintra's glorious Eden ...»

(Lord Byron, Childe Harold’s Pilgrimage, 1.XVIII)

 

      Durante décadas os problemas relaciona­dos com a recuperação de um monumento, de um centro histórico, mesmo de uma pai­sagem, resumiam-se essencialmente à optimização das técnicas interventivas, tendo em vista preservar a autenticidade do bem e, tanto quanto possível, conciliar, sob o ponto de vista da ciência dos materiais, os novos produtos empregues nos restauros com as estruturas originais. Tratava-se, pois, de um assunto eminentemente técnico, no âm­bito da engenharia e do restauro, o qual — pesem embora várias diferenças de escola — não constitui hoje motivo de especial polé­mica, encontrando-se de há muito consensualizados os processos mais eficazes a aplicar.

      Porém, desde há alguns anos que se vem a colocar uma outra dimensão do problema. Não já a do equilíbrio material do bem, mas sim a da manutenção das características ambientais próprias dos edifícios e dos lugares, características não apenas ditadas pela es­sência do próprio objecto, arquitectónico ou paisagístico, na sua originalidade, na sua autenticidade, mas também pelas múltiplas e imprevisíveis marcas da passagem do tempo.

      Muitas vezes um visitante não é especial­mente atraído pelo estilo de um edifício, pelo rigor urbanístico de um bairro, ou pela raridade de uma espécie vegetal, mas sim por factores aleatórios que, ao longo dos tempos, imprimiram a esses lugares um sabor particular, uma ambiência própria.

      Trata-se agora, em última análise, de manter vivo o "génio do lugar", dimensão sensorial que não é mensurável, nem muitas vezes facilmente explicável, mas que quase sempre constitui, afinal, um dos mais signifi­cativos sinais de distinção entre cada sítio, cada centro histórico, cada monumento — e, muitas vezes, o principal motivo de atrac­ção que exerce junto dos visitantes.

      A nossa época não se contenta com exactidões matemáticas, antes procura as inson­dáveis subtilezas inerentes ao subjectivo. Usufruir um sítio, contemplá-lo, não se faz só com o cérebro, mas também – e principalmente – com a alma.

      Evidentemente que a reabilitação de um centro urbano, a recuperação de imóveis ou de jardins históricos, implicam necessaria­mente a utilização das técnicas credenciadas, a nível internacional, pela ciência e pela prática. Mas haverá também que saber conciliá-las com a intransigente protecção do "génio do lugar", sob pena de transformar um organismo vivo num simples corpo embalsamado.

      Este é um desafio da actualidade, dos nossos tempos, da nossa geração. As soluções não são simples, nem universais, nem mesmo unânimes. Mas há que encarar de frente o problema, evitando sempre as respostas mais fáceis, as intervenções estandardizadas, os lugares-comuns. Cada bem patrimonial é um caso singular, e unicamente uma profunda meditação sobre a sua específica personali­dade nos poderá conduzir ao caminho mais correcto.

      Trata-se de evidenciar e preservar a com­ponente imaterial que envolve um mo­numento, um centro histórico, uma paisa­gem, componente imaterial que muitas vezes se cristalizou no imaginário colectivo não só por directa acção das intrínsecas caracterís­ticas ambientais de um objecto, de um local, mas também a partir de determinada visão privilegiada a dada altura fixada num poema, num romance, num texto de viagem, numa tela, e que veio ulteriormente a condicionar não só o modo de olhar e de usufruir esse bem patrimonial, mas também a criar expectativas previamente construídas no imaginário dos potenciais visitantes.

            Poetas como Lord Byron, escritores como Pierre Loti, ou os pintores orientalistas —

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