SINTRA, PATRIMÓNIO CULTURAL E NATURAL 89.10.16
Conferência proferida pelo Ex.° Sr. Professor Doutor H. C. Francisco Caldeira Cabral Arquitecto Paisagista no Palácio de Valenças a convite da ADPS
Associação de Defesa do Património de Sintra
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SINTRA, PATRIMÓNIO CULTURAL E NATURAL 89.10.16 Conferência proferida pelo Ex.° Sr. Professor Doutor H. C. Francisco Caldeira Cabral Arquitecto Paisagista
Anexo Lista das Quintas, Palácios e outros valores culturais do Concelho de Sintra, pela Arquitecta Paisagista Idalina Bordalo
Faz hoje precisamente um ano menos onze dias que falei nesta Vila de Sintra sobre um tema muito parecido com o de hoje: Sintra. Quando perguntei há um ano sobre o que queriam que falasse, disseram-me - Sintra. E hoje novamente vou falar sobre Sintra. É claro que não quero repetir hoje o que disse há um ano, mas penso que é preciso repetir, como diz S. Paulo "oportunae importune", e por isso vou novamente começar por chamar a atenção para o facto de que, no meio de uma planície predominantemente calcária se ergue de repente, este maciço, o batólito de Sintra, que é essencialmente granítico. Embora tenha uma composição extraordinariamente variada, mesmo na parte superior, mas sobretudo na base onde as camadas subjacentes surgem agora à superfície pelo próprio aparecimento do batólito. Isto dá imediatamente uma variação de substrato que é o primeiro elemento de variação, tão rica como veremos adiante. O segundo ponto notável para que queria chamar a atenção era o Cabo da Roca. Toda a gente sabe que o Cabo é o ponto mais ocidental do Continente Europeu - há uma pontinha da Irlanda que fica meio grau mais a ocidente, mas é uma ilha, não é o Continente - e talvez isto tenha sido providencial para partirmos para o resto do Mundo porque era a "ponta avançada", "cabeça da Europa toda" como lhe chamou o épico, com o espanto de muita gente hoje em dia. Outro ponto notável imediatamente a seguir é o Guincho. A praia do Guincho resulta de uma "porta de vento" que aparece a Sul do Cabo da Roca. E batemos aqui logo num ponto importantíssimo que é o vento, mas já lá vamos. Queria ainda chamar a atenção para o seguinte, a planície que rodeia, Sintra está mais ou menos à cota 100. As altitudes máximas de Sintra são 491 m na Peninha, 582 m na Cruz Alta. Portanto há uma diferença de 400/500 m em relação à planície que circunda a Serra e quase 600 m do mar que lhe está fronteiro. Este facto é extraordinariamente importante para todo o resto. Efectivamente estamos numa zona de ventos, os chamados ventos alísios, que no Inverno sopram de N/NE e no Verão de N/NO, nunca sendo ventos extremamente frios porque a proximidade do mar os aquece. Temos a felicidade de ter junto à nossa costa a Corrente do Golfo, que faz que estando na mesma latitude de Nova Iorque, Lisboa tenha como temperatura mínima -1,2°C, uma vez em 200 anos, e Nova Iorque tenha como temperatura mínima -40°C. É claro que em vez da Corrente do Golfo, Nova Iorque tem a Corrente do Labrador que vem directamente da Gronelândia. Estes ventos de que falei há pouco, são ventos de uma grande constância e determinam, em primeiro lugar, todo o regime hídrico da Serra porque, o vento NO é o grande causador dos nevoeiros da Serra de Sintra - que são aproveitados por todos os inimigos de Sintra para dizer mal desta terra - mas, que no fundo são a principal origem dos seus encantos. Este vento é um vento que vem do mar, carregado de humidade que, ao subir a Serra abruptamente, se expande, logicamente, como não recebe calor, esta expansão, é uma expansão adiabática, quer dizer que se faz à custa do calor interno da massa do vento e, consequentemente, a temperatura desce. Descendo a temperatura atinge-se o ponto de orvalho forma-se o conhecido nevoeiro de Sintra. Este nevoeiro de Sintra representa um acréscimo muito grande à precipitação de Sintra, que já de si - por causa da altitude - é muito mais elevada do que a precipitação da zona em redor. Mas, é sobretudo este nevoeiro que aparece no Verão, que transforma o clima da Serra em relação à planície que a rodeia. Não lhes vou cansar com números, que são sempre fatigantes. Queria dizer apenas que a Serra está na direcção Este/Oeste e soprando o vento na direcção N/NO, tem uma certa inclinação à Serra de onde resulta que ao mesmo tempo que há uma ascensão há um desvio no sentido para leste, para o lado da terra. Esse desvio conjuntamente com os ventos que, por um mecanismo semelhante, são desviados pela Serra da Carregueira fazem um "efeito de Venturi", no intervalo deixado entre as duas serras e por isso toda a ventania da Linha que vai até Carcavelos. É uma zona especialmente ventosa porque é um canal de vento, a juntar ao outro canal de vento que vem do Guincho. Isto à volta de Sintra. Pelo contrário, em Sintra, não se sente vento e toda a gente pensa que em Sintra não há vento. É um engano, um engano que temos de compreender. Sintra, ainda neste momento - ainda ontem dei por aqui um passeio e tive ocasião de o apreciar bem comporta-se como uma mata, uma floresta, todo o conjunto de Sintra. E dentro da floresta não há vento, ele passa por cima, não entra, senão ocasionalmente onde há algum buraco. Isto quer dizer que, para nós gozarmos deste sossego, que é uma das coisas apreciadas em Sintra, desta falta de vento, precisamos de não perturbar a continuidade do coberto vegetal. Porque no dia em que desaparecesse a Mata - como o disse há um ano - por uma catástrofe natural ou um descuido das gentes (nós já vimos que o descuido das gentes sucedeu este ano, já lá iremos) nessa altura o vento seria tão forte como no Estoril, ou mais. É também de chamar a atenção como valor patrimonial para a radiação - ela não depende da nossa vontade - mas é um valor que a Providência nos põe à disposição e por isso é interessante ver e verificar que nós temos 350 dias com temperatura média superior a 10°C - 350 dias no ano e em comparação com a França, por exemplo no paralelo 46, temos uma radiação global de 45 Kcal/cm2 ao passo que a França tem 30, tendo nós 1110,6 horas de sol no período Outubro/Março (período de menos sol), contra 600 horas em França, cerca de metade. Isto são apenas números para nos darem ordens de grandeza. Como todos sabem estas horas de Sol são decisivas para a fotossíntese, portanto para a produção vegetal de uma maneira geral e daí a exuberância da nossa vegetação. A água, a radiação e o solo são os três factores que se conjugam aqui para para nos darem esta exuberância que fez sempre em Sintra, a maravilha. E qual era a vegetação originária da Serra? A vegetação originária de toda esta Região, incluindo a charneca de Sintra, era um carvalhal em que, pelo que se pode avaliar pelo que resta, predominavam duas espécies: o Carvalho Negral ou Carvalho Pardo da Beira (Quercus pyrenaica) e o Sobreiro (Quercus suber). Nós encontramos sobreiros por toda a parte, desde a Boca do Inferno - do lado de lá - até ao Convento dos Capuchos - do lado de cá. O sobreiro está "em casa" por toda a parte. Num valezinho onde em tempos esteve instalada uma Secção da Mitra, ao pé de Alcabideche, tinha as encostas recobertas com sobreiros. Mas podemos encontrar aqui igualmente o Carvalho Cerquinho, a Azinheira, o Roble, o Carrasco, quer dizer, praticamente todas as espécies de carvalhos de Portugal estão presentes na Serra de Sintra, espontâneas. Estão ou estiveram. E o mais estranho para nós hoje é que não estavam só na Serra, estavam também na zona à volta da Serra. Aí é mais difícil de os encontrar, a não ser o carrasco que aparece por toda a parte, como pequenino arbusto mas, que só é pequenino arbusto porque foi sempre explorado em talhadio como combustível para fornos de cal porque em si é uma árvore que atinge os 16/17 m. Aparece também o Carvalho Negral, ao pé do Ramalhão e noutros locais, também baixinho. Mas temos outras árvores além destas como, por exemplo, o Pinheiro Manso, o Bordo (Acer pseudoplatanus) - na Serra de Sintra - a Oliveira Brava ou Zambujeiro, que aparece sobretudo na zona mais exposta ao mar e mais seca, na encosta sul, além de aparecer um pouco por toda a parte. E temos uma árvore muito bonita e pouco lembrada: o Medronheiro, que com os seus frutos - os medronhos - até embebeda os pássaros. O medronho tem uma fermentação alcoólica ainda pendurado na árvore, de modo que os pássaros o comem gulosamente e depois andam aos bordos como se tivessem ido a uma discoteca. E muitas outras coisas. Temos uma Peonia (Paeonia lusitânica) que é espontânea nos matos da Serra de Sintra, sendo aliás uma companheira da Quercus pyrenaica. Temos o Zimbro, que conhecemos muito da Marinha, mas que aparece também para dentro da Serra com um aspecto tão diferente que é quase irreconhecível, a Juniperus phoenicea. E não vou alongar-me mais em nomes latinos de plantas a não ser três espécies, duas ainda hoje muito importantes e uma terceira em vias de desaparecimento, que são as espécies das zonas húmidas, que podem ser não apenas as linhas de água mas, também zonas onde a água aparece à superfície e que são o Freixo, a Bomadeira Negra e o Ulmeiro. O velho ulmeiro, que tantas saudades nos faz mas que, por enquanto, continua ainda em declínio. Esperemos que venha a ter a mesma sorte que o Castanheiro cuja doença está em vias de acabar. Desta vez não foram os sábios que a fizeram acabar, porque não conseguiram encontrar nenhum remédio - o único era o Castanheiro Japonês que se dava mal no nosso clima - mas, foi simplesmente um mutante de bactéria que matava o Castanheiro que mata a outra bactéria sem matar o Castanheiro. Apareceu há quatro anos em Itália tendo vindo a progredir, de modo que o Castanheiro hoje é uma planta que se pode voltar a plantar em Portugal e que está a renascer em toda a Europa. Desta floresta o Homem começou, desde tempos imemoriais a criar a sua paisagem humanizada. Ora acontece que o Homem não é um animal da Floresta, o animal da Floresta é o macaco, não é o homem, tão pouco é um animal da estepe, o animal da estepe é o Carneiro. O Homem é um animal muito especial, todos nós sentimos e sabemos que o somos. O Homem é um animal da orla da Mata. Precisa da clareira e precisa da Mata. Precisa das duas coisas. E foi o que ele fez. Começou a fazer clareiras, só que às vezes foi tão longe que transformou tudo em clareira e desapareceu a Mata. Não foi o caso aqui em Sintra, mas, foi um pouco o caso na Charneca. Na Charneca só há vestígios das árvores, há uns zambujeiros com 2 m mais ou menos, mas, quando temos possibilidade de ir à Tapada da Ajuda ver o que são Zambujeiros à vontade, crescendo em boa terra, encontramos árvores com 20/25 m de altura, bastante diferentes destes pobres zambujeiros retorcidos, que mercê do Homem e do vento ainda restam na nossa Charneca. A Charneca foi durante muitos anos explorada agricolamente, mais ou menos, conforme os solos eram mais profundos ou menos profundos e fundamentalmente apresentava folhas de cultura arvense, folhas de pastagem, de forragem e matos. O mato, como em toda a nossa agricultura mediterrânica era uma parte essencial. Porque era e é, ainda hoje, a única forma de conseguir manter o balanço da matéria orgânica no solo, indispensável à alimentação correcta das plantas. Não há adubo que substitua mato. Porque o adubo serve talvez para "abrir o apetite" - como os aperitivos - mas, não serve para dar de comer. A única coisa que consegue, no nosso clima, manter o balanço de matéria orgânica positivo são as plantas lenhosas - as palhas não têm qualquer interesse. Isto está um bocadinho à margem do nosso tema mas, tem muita importância especialmente para nós que nos interessamos pela Conservação da Natureza. Estamos perante uma ameaça trágica: não sei se já ouviram falar - mas tem andado nos jornais - a existência de 300/400 projectos de aproveitamento da matéria orgânica, aproveitamento industrial para obtenção de energia. Ora queria aproveitar mais uma vez esta oportunidade para chamar a atenção para o facto que o primeiro aproveitamento de energia é o aproveitamento agrícola. Podemos ter imensa electricidade mas, se não tivermos pão e bifes, a electricidade só nos serve para nos acompanhar ao enterro. Se é que ainda ficava alguém para nos enterrar... Outra característica de paisagem de Charneca são os muros de pedra solta, que tinham e têm dois objectivos. Um objectivo de abrigo, embora sejam baixos mas, efectivamente numa zona ventosa como esta é, têm esse efeito e têm o efeito de abrigo até pela sua permeabilidade, porque um obstáculo permeável é muito mais eficaz do que um obstáculo impermeável, como abrigo de vento. Outra finalidade é que serviram sempre como tapados para o gado. O gado andava a pastar atrás do muro e não precisava grandemente de guarda, visto que aqui na nossa terra já há muitos anos que não há lobos. A fauna de mamíferos carnívoros acabou relativamente cedo numa zona de tão grande ocupação humana. Na encosta Norte, em vez deste tipo de Charneca que encontramos a Sul, encontra-se sobretudo a vinha, os pomares e hortas de Colares. Aqui os abrigos são diferentes, extraordinariamente interessantes e engenhosos. A vinha de Colares, como sabem, a vinha originária do Ramisco é cultivada sobre o solo. É uma vinha alta enterrada, ou seja, era enraizada na camada argilosa por baixo da areia, sendo coberta de areia até acima. As raízes estavam lá em baixo e a vinha depois crescia sobre o terreno. Isto é um sistema muito antigo que está bem descrito por "Columella", portanto no séc. D.C.. Os abrigos são sebes de cana morta. Pelo contrário nas hortas encontramos dois tipos de sebes muito diferentes e curiosas. Uma delas é a sebe clássica da zona Norte de Sintra que é uma sebe permanente, um canavial permanente, relativamente estreito (50-60cm), atado com cana, onde todos os anos se cortam as canas de dois anos e se metem no sistema as novas canas. Este tipo de abrigo existe todo o ano. Na zona sul é um canavial largo, porque é muito utilizado como material para a horta e outras coisas sendo cortado rente em Fevereiro para crescer depois á medida que o Verão se vem aproximando. Qual a razão disto - penso eu - os solos desta zona são solos pesados que Fevereiro precisam de secar, ao passo que no verão precisam da protecção da sebe. E assim se consegue este equilíbrio. Em Sintra - veremos isso depois - o abrigo foi sempre uma constante. Quintas sem abrigos não tinham valor, pelo menos quando era garoto era assim. Os abrigos eram essenciais porque, de facto, há vento - ao contrário do que se pensa. Esses abrigos geralmente eram sebes talhadas de buxo (poucas vezes), de pitósporo, de mióporo (as chamadas mulatas). Eis os principais elementos desses abrigos. Eram abrigos de 4/5 m de altura, podados todos os anos, talhados e com uma grande capacidade de resistência ao vento. A ocupação da Serra fez-se de uma maneira diferente. Fez-se, sobretudo com Quintas. Não eram grandes extensões nunca, eram Quintas. É evidente que essas Quintas, como nesse tempo não havia supermercados, tinham de fornecer tudo do que a pessoa precisava e portanto tinham uma parte de recreio - a que podemos chamar o jardim ou coisa semelhante - e outra parte agrícola - horta com um pouco de regadio e uma zona de cereal indispensável porque não esqueçamos que o meio de transporte era o cavalo de sela ou de tiro que não ia encher o depósito à gasolineira, tinha de ter camas de palha e de comer grão que era preciso produzir. Portanto, a Quinta era este complexo, não era nada que se parecesse com o que é hoje. Essas Quintas foram ocupando a Serra e foram aumentando a sua área a partir do Séc. XVIII e, sobretudo, no séc. XIX, começaram a aparecer os Parques cujos protótipos são o Parque da Pena de D. Fernando II e o de Monserrate de Sir Francis Cook. Entretanto já havia outras Quintas, como por exemplo a Quinta da Penha Verde - que recordo mais uma vez como o fiz o ano passado, porque há verdades que é preciso repetir - é uma jóia preciosa um caso único, anterior ao Paisagismo Inglês de pelo menos um século e ninguém sabe, ninguém vê, e neste momento nem sequer se sabe qual é a sorte da Quinta da Penha Verde pois não se pode lá entrar. Não se sabe o que se está lá a passar. Esta Quinta - como sabem também - foi de D. João de Castro, um dos maiores homens da nossa história. Segundo Amundser, o primeiro geógrafo, no sentido moderno de termo, foi ele que fez a Quinta da Penha Verde. Lembro isto mais uma vez, porque a Penha Verde é em Sintra e é necessário ter cuidado com o que se passa. Ora bem, estes parques começaram no fim do séc. XVIII, princípio do séc. XIX, a introduzir plantas novas - árvores sobretudo - na flora da Serra. Esse movimento deve ter estado muito ligado à própria criação do Jardim Botânico da Ajuda, porque uma das suas funções era a aclimatação - isto é trazer plantas do ultramar e experimentar como se poderiam multiplicar e adaptar noutros lados - e portanto diversas plantas vieram para aqui. Está certíssimo, não há inconveniente nenhum nisso. Plantaram-se as coisas mais variadas - temos sobretudo no Parque da Pena e Jardim de Monserrate tal número de espécies que eles deveriam ser um verdadeiro arboreto nacional de valor europeu e mundial. Há plantas que na Europa, só aqui e em Lisboa conseguem frutificar como é o caso das Cicas, que são plantas muito antigas na ordem da evolução vegetal, que ainda não são palmeiras, mas quase, e que só aqui frutificam abundantemente. Portanto, enriqueceram-se os nossos jardins e os nossos parques com uma variedade enorme de plantas que eram usadas com duas finalidades, a primeira uma finalidade estética do jardim e de composição, a segunda de experimentar se a planta se daria bem cá. E aqui passamos para outro aspecto - que caracterizou a 2a metade do séc. XIX - que foi experimentar a possibilidade de introdução de novas espécies na arborização florestal. E o que se fez em Sintra, fez-se também na Serra da Estrela, em 1880-90, em toda a zona das Penhas Douradas e Manteigas - estando tudo isso certíssimo, tanto mais, que nessa altura nada se sabia do que nós hoje chamamos fito-sociologia. Conheciam-se as plantas, já adiantadamente, em matéria de classificação, conheciam-se muitos aspectos da vida da mata mas, a noção de formação vegetal, a interdependência de todo o meio físico e biológico, disso ainda não se fazia ideia nenhuma. De maneira que se plantaram Cupressus, a que chamamos impropriamente cedros, e ninguém reparou que numa mata de cedros, normalmente, não tem por baixo nem uma erva. Quando muito na Tapada da Ajuda, por baixo havia erva-pata, que é o trevo amarelo oriundo da África do Sul. Quer dizer, ao contrário de um carvalhal que tem os seus diferentes estratos (estrato superior, estrato arbóreo, estrato arbustivo, estrato herbáceo e junto ao solo, tem musgos) uma mata de Cupressus em Portugal, e curiosamente, também em Berlim - onde tive ocasião de ver uma mata de Chamaecyparis, que é um género muito parecido com os cedros - não dá nada. É aquilo e mais nada. Ao mesmo tempo que não há plantas associadas, também não há animais. Não há vida animal nenhuma dentro daquela mata. É curioso como certas plantas são repulsivas. Lembro-me de um estudo feito na Tapada da Ajuda sobre a fauna ornitológica - passarinhos de tapada - em que se verificou, por exemplo, que na mulata (Myoporum acuminatum) não havia nada senão umas cochonilhazinhas e, poucas, o resto nada. Nem pássaros, nem formigas, coisa nenhuma. Isto desconhecia-se inteiramente no séc. XIX, por isso ficámos muitos satisfeitos porque os Cupressus se davam bem, porque as Acácias cresciam, que era de louvar a Deus, porque o Pitosporo também se fazia engraçado, o mesmo acontecendo com as Hakeas e até finalmente com os Eucaliptos. Mas, depois houve umas surpresas. E as surpresas foram estas, por exemplo: as Acácias começaram a invadir tudo e não só formavam associações com as outras como eliminavam as outras. É fácil ver aqui na Serra aspectos da Acácia melanoxylon em que não há mais nada. O mesmo acontece, em grande parte com a Acácia dealbata, a mimosa, que tem umas flores amarelas muito bonitas. Nós agora estamos a gozar, porque exportamos mimosa em flor, cortada das nossas estradas, para Paris, que vale um dinheirão, porque eles para a terem em flor nesse tempo - mesmo na Côte d'Azur - têm de a ter em estufa - nós têmo-las nas estradas do Alentejo sendo necessário sómente chegar lá, cortar, meter dentro de uma caixinha e mandar para Paris. E vale logo 5 francos cada pé. Mas, o mesmo aconteceu com o Pittosporum undulatum o célebre incenso dos açoreanos, que também invade aqui a Serra, mas, que não é tão perigoso como as outras porque basta arrancá-lo, e as outras nem isso, porque rebentam de raiz e dão fruto que nunca mais acaba. Dos eucaliptos não vou dizer mais nada hoje, isso só, dava para uma conferência. As Hakeas fizeram também por aí das suas. Nós hoje temos um conceito completamente diferente de mata. Consideramos a mata, não como um somatório de indivíduos, mas, como uma biocenose, em que entram as árvores, toda a vida vegetal acima do solo, mas, também a vida do solo, vegetal e animal. A sua importância no ecossistema dos nossos climas é enorme. O Homem vive na orla da mata e, portanto, precisa da mata. Quando isso não acontece, quando caminhamos no sentido da estepe, estamos a caminhar no sentido do deserto. Deserto climático, por causa da perda de precipitação e deserto por falta de relação pois o homem não tem escala de altura. A nossa organização ideal continua a ser aquela que os romanos institucionalizaram e definiram como o Ager, o Saltus e a Silva. O Ager que era o campo cultivado. O Saltus que era o mato onde o gado pastava, onde se iam buscar as camas do gado, onde se iam buscar o estrume e ao mesmo tempo também a terra que tinha sido abandonada, porque nesses tempos - como hoje - o que se cultivava e o que se abandonava era um sistema dinâmico, não era uma coisa fixa, embora tenhamos sempre a ideia de que isto foi sempre como está. Está sempre a mudar. Simplesmente há épocas de aceleração no sentido intervencionista e é aí que é preciso, ter cuidado, porque fazemos coisas muito boas mas, de vez em quando, fazemos tolices. Somos tentados a fazê-las. O equilíbrio que referi tem muito a ver com uma noção que introduzi vai para uns vinte anos e a que chamei de "continum naturale", e utilizei o latim - não para fingir que sabia muito latim - mas, para criar uma designação que não precisasse de ser traduzida na maior parte das línguas, ficando assim como uma noção típica. O que é afinal este "continum naturale"? É uma coisa simplicíssima mas, decisiva. Todos os elementos do meio físico e biológico representam, no fundo, fluxos de energia. Como tal, para haver fluxo é necessário que haja diferenças de potencial, isto é, é preciso haver polos, um «+» e um «-». Depois é preciso haver continuidade, porque pode haver muita electricidade nos fios mas, se não tiver um fio até aqui não vem cá parar nenhuma. O mesmo se passa com a água; plantar um chorão, que é uma planta da borda de água, à borda de um tanque, é pensar que alguém trabalhou mal, ou o pedreiro que fez o tanque não o deixou estanque, ou o homem que meteu o cano deixou alguma fugazinha, porque só de ver a água o chorão não vive - precisa de água na raiz. A mata com a composição que deve ter é um elemento essencial para a manutenção deste "continum naturale" na paisagem humanizada. Nós temos agora uma oportunidade aqui na Serra, e a oportunidade foi o fogo que assolou a Serra este ano e que, graças a Deus, não foi mais longe. O fogo trouxe-nos um problema de rearborização. Aquilo que queria propôr nesta Sessão era que essa rearborização fosse a ocasião para instalar na Serra de Sintra uma mata, humanizada sem duvida; não é a mata primitiva que há em Gibraltar, com macacos, que já não há mas, podia haver outra vez, mas, suficientemente próxima da natureza para poder exercer as acções naturais que deve exercer na paisagem humanizada. Isto é, vamos novamente instalar um carvalhal, sem necessidade de o cortar para madeira daqui a quinze anos - deixa-lo crescer, coitadinho - que ele paga-nos com rendimento dobrado a paciência que tivermos de esperar que ele cresça. E onde novamente haja toda a flora e toda a fauna - não estou a dizer que vamos introduzir ursos outra vez aqui na Serra, nem mesmo os lobos, porque sei o que custam lá na minha serra, nem os javalis, que estão a entrar em Portugal em grande força (tive este ano a 200m de casa, uma seara de milho destruída por javalis) - sendo moderados quanto a esta. Mas, temos de estudar a maneira de conseguir uma mata desse tipo. Isto é, em que seja possível tirarmos proveito do lazer, não podendo esse lazer ser o mesmo do séc. XII, séc. XV, séc. XVII, ou mesmo do início do Séc. XX, quando nasci. Essa mata ainda hoje pode ter interesse muito grande do ponto de vista turístico, grande pela sua beleza e grande até pelo seu interesse científico. Porque o interesse científico também é objecto turístico. Os turistas são diferentes mas, é um objecto de turismo. De qualquer maneira essa mata seria um objecto de contemplação para o homem moderno sedento da natureza. E com esta proposta termino o meu discurso, e eis aqui o desafio que lhes proponho. Tenho dito. Sintra, 16 de Setembro de 1989 Anexo
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