Associação de Defesa do Património de Sintra

 

PATRIMÓNIO DOS SABERES

 

 

      António Pereira Constantino nasceu em Almeirim a 29 de Dezembro de 1928 e começou a trabalhar para uma dinastia de mestres estucadores na mesma localidade, tendo trabalhado directamente com Francisco de Almeida “0 Ruço” e António Fonseca, conhecidos pelos “pintores”.

 

 

Reside em Sintra desde 1972, na Freguesia de Santa Maria e São Miguel, aplicando no seu trabalho de estucador as antigas técnicas de moldes em gesso para fundir florões, de “abrir moldes”1 e “correr molduras”2, usando os materiais tradicionais.

      Numa louvável atitude, aceitou transmitir segredos da sua arte para que técnicas e expressões, próprias do seu labor, não caiam no esquecimento, contribuindo assim para a protecção do Património Cultural.

 

Começou o Sr. Constantino a contar... “ Para fazer a massa para o estuque a primeira operação é “caldar a cal”3; depois faz-se a “massa de esboço”4 que serve para regularizar tectos ou paredes onde depois é aplicado o estuque. Antigamente eram os

 

António Pereira Constantino vestido com o traje tradicional de estucador

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encarregados das tintas (de madeira) que caldavam e passavam a cal e faziam a massa de esboço.

      O tabuleiro para  fazer esta massa, a qual era misturada com uma enxada, tinha aproximadamente 2,00 x 1,20 m e era assente em cima de uns barrotes colocados no chão. O mesmo tabuleiro levava uma tábua com 20 cm de altura em toda a volta. Estas medidas não eram rigorosas pois a sua construção dependia da madeira que estava disponível.

      Antes de a areia ser misturada com a cal, era “crivada”5 e a cal , quando arrefecia, era passada por uma rede grossa e depois por uma mais fina num passador próprio(Fig.1). As Redes eram amovíveis e lavadas após esta operação.

      Antigamente os tectos, antes de serem estucados, eram “fasquiados”6 (Fig.2).

 

1 " Abrir moldes" - fabricar os moldes em madeira e recortar em chapa zincada o perfil da moldura

2 "Correr molduras" - aplicar a massa que depois é corrida com o molde que trabalha  em  cima  de  uma  régua  previamente

     pregada na parede ou tecto.

3 "Caldar a cal" - Coloca-se a água numa tina  ou  bidon  onde  é  posta  uma  tábua  inclinada  para  que  as  pedras  de  cal

     escorreguem por esta tábua abaixo e não entrem em cntacto brusco com a água fria ou já quente. Esta tábua  serve  depois

     para mexer a cal.

4 "Massa de esboço" -  cal  caldada  e  passada  onde  é  misturada  areia  branca  proveniente  de  Coina,   dum   areeiro   ou

    acastanhada do Rio Tejo. A areia do rio é lavada mas o saibro que é tirado da terra tem goma, a  areia  perto  do  mar  não

    pode ser utilizada nem aquela com urina de animais pois causa salitre. A areia branca dos pinhais é boa se não apanhar o

    ar do mar.

 

 

Figura 1

 

nº.   1 passador

nº.   2 mão do passador

nº.   3 crivo de gesso

nº.   4 crivo de areia

nº.   5 caneca de água

nº.   6 talocha

nº.   7 meia talocha

nº.   8 régua de cantos

nº.   9 pano de fundo

           (sarjão crú, sem goma)

nº. 10 moldura

nº. 11 molde de tabelas

           ou de círculos revestido a

           chapa zincada

nº. 12 molde entalado

           de madeira revestido a chapa

           zincada

Figura 2. Fasquiado

 

      Os tectos tinham vigas de madeira onde eram pregadas as fasquias; seguidamente eram feitas “linhadas”7 aplicadas em sentido contrário às fasquias,  deixando  um   intervalo   de dois a três centímetros e na ocasião em que eram colocadas era passada a costa da colher para as pressionar contra o fasquiado (Fig.3). Por cima das linhadas os tectos eram esboçados com uma massa composta de cal, areia e gesso. Deixava-se secar o esboço antes de estucar. A massa de estuque era feita na altura em que ia ser aplicada, deitando-se em cima da estância8 a quantidade de cal necessária para o trabalho a efectuar; abrindo-se uma caldeira na cal caldada onde era deitada a água, depois o gesso anteriormente crivado para dentro de um caixote de onde fora retirado com uma pá e, uma vez feita a mistura, a massa era aplicada rapidamente para não secar.

 

     Mais modernamente começou a utilizar-se o estafe, que são chapas de gesso de 1,00 x 0,50 m e 1 cm de espessura. As chapas são feitas com pita e três fasquias no seu interior e no sentido do comprimento, uma ao centro e as outras encostadas aos bordos laterais da chapa, para tornar possível pregá-las aos barrotes. Utilizam-se pregos zincados próprios para este efeito. As juntas são linhadas e depois esboçado o tecto com massa e cal, areia e gesso.

      No caso de levar molduras, estas são corridas num molde entalado ou de tabelas9  (Fig.4) e, em seguida, é aplicado o estuque. Com o molde fazem-se as partes direitas e para a ligação dos cantos (atar cantos) usa-se a régua de cantos (Fig.6), espátulas (Fig.5), colher de ponta e colher da massa (Fig.5) e (Fig.3).

      Quando se acabam de afagar e arrematar as paredes estas são passadas

 

com pano de fundo (dar pano) (Fig.1) e depois levam trincha molhada (Fig.3).

 Depois é sacudida a água da trincha e as paredes são espanadas, isto é, são passadas com a trincha já sem água (Fig.3). Em seguida as paredes são batidas com uma boneca com pó de jaspe, depois passam-se as mãos espalmadas para tirar o excesso de jaspe e, ao mesmo tempo, levá-lo a sítios onde a boneca não bateu e assim uniformizar a sua distribuição. Finalmente a parede é passada com uma baeta (flanela de dois pêlos).

     Antigamente nas vivendas, cada divisão tinha a sua cor própria aos usos a que se destinava; as cores eram misturadas na própria massa, usando pós comprados nas drogarias.

Exemplos:

Quarto de rapariga – rosa claro

Quarto de rapaz – azul claro

 

5  "Crivada" - Crivar - passar através de uma rede.

6 "Fasquiado" - ripas de madeira de pinho com mais ou menos um centímetro de  espessura,  já  sotadas  de  ambos  os  lados,

    paralelas umas às outras e, nos intervalos, cheias com massa  de  cal  e  de  areia  amarela,  utilizando-se  o  esparvel  (uma

    peça de madeira de 30 x 30 cm com um cabo ao meio) para empurrar a massa contra as fasquias, sendo este  trabalho  feito

    pelos pedreiros.

7 "Linhadas" - fios de sisal ou pita embebidos em gesso líquido.

8 "estância" - estrado de madeira montado em cima de dois cavaletes para fazer a massa de estuque.

9 "Molde entalado" - o molde é corrido entre réguas de madeira, uma na parede e outra no tecto.

10 Lápis redondo e grosso.

 

 

Figura 3

 

nº.1 lápis

nº.2 metro em

        madeira

nº.3 espátula de

         faixas

nº.4 espátula de

        arrematar

nº.5 colher de ponta

nº.6 colher de massa

nº.7 colher de afagar

nº.8 carrinho de

        linha (bate-se a

        linha de fora-a-

 

 

 

        -fora para

        pregar as

        réguas para o

        molde)

nº.   9 trincha grande

nº.10 colherim de

           burnir

nº.11 faca de moldes

nº.12 brocha de

           ponta

nº.13 pincel de

          ponta

nº.14 martelo

 

 

 

nº.15 serrote para

          madeira e

          gesso

nº.16 espátula de

          dois lados para

          tirar massa

nº.17 espátula de

          meia cana

nº.18 espátula de

          dois

          centímetros de

          largura

nº.19 ferro de cantos

 

Exemplo de fundição em gesso

 

 

Figura 5

 

nº.1 espátula de estéis

nº.2 espátula de estéis

nº.3 espátula de meia cana

 

nº.4 colher de ponta

nº.5 colher de massa

nº.6 talocha

 

 

Pais – rosa velho ou creme

Sala de costura – azul claro, cinzento claro ou creme

Sala – verde claro

Cozinha – creme ou branco

Casa de banho – creme ou branco

Corredores – creme

 

      Tanto corredores como casas de banho, cozinhas e marquises levavam lambrim fingido a fresco. A massa feita com cal e areia de rio seco e cimento branco ou gesso, depois de aplicada à talocha era afagada à colher (Fig.3) e levava uma aguada de cal muito fina aplicada à trincha. Seguidamente, com lápis10 (Fig.10) era feita a divisão da parede em “pedras”, com ou sem faixa (Fig.7); a seguir aplicava-se com esponja do mar ou brocha grande, redonda, em cerda a aguada de cal com as cores previamente dissolvidas (ocres, almagre11, verde e azul metálico, pó de sapato e sombra de oliveira). Para abrir as manchas que imitavam a pedra utilizava-se algodão embebido em água, para serem avivados os veios eram utilizados alguns pêlos de cerda da brocha amarrados num pequeno pau. Depois a parede levava jaspe, passavam-se as mãos, a baeta e no final o lambrim era burnido a colherim (Fig.3).

     As  frentes    dos   prédios,   antes  de

 

serem pintadas, eram esboçadas com massa estendida e dobrada12 e depois passadas com serapilheira (aproveitada das sacas de gesso) ou esponja embebida em água. Este acabamento chamava-se areado ou roscone.

     Como antigamente não havia tintas plásticas, as tintas que se chamavam temperas eram feitas com grude (derretida em banho-maria), água de cal, alvaiade de zinco e corante em pó. Também se podia utilizar leite para misturar as cores, levando ou não grude.

      As frentes dos prédios eram pintadas com uma mistura de aguada de cal, ocre ou almagre aplicados à esponja. Em determinados casos, quando a cal era caldada, misturava-se sebo de carneiro derretido para impermeabilizar as paredes para a humidade não se infiltrar. Quando se tinha que voltar a pintar a parede, esta era primeiro escovada para retirar a camada gordurosa.

      Ao efectuar este trabalho, a pele da ponta dos dedos gastava-se pelo contacto com a serapilheira e a água suja de cal e areia originava pequenas feridas chamadas pintassilgos que se procuravam curar com resina de pinheiro ou gotas de azeite quente: uma pessoa acendia um fósforo, o que tinha o pintassilgo pegava em caruma ou noutro pau de fósforo mergulhado no azeite, que

 

depois de retirado era aquecido na chama do fósforo e deixava-se cair esta gota a escaldar em cima do pintassilgo”.

Acrescentou ainda o Sr. Constantino...”Depois de se aplicar a massa nos moldes era necessário lavar as mãos e secá-las, não se devia usar sabão porque a potassa não era compatível com a cal e a pele ficava ainda mais queimada. Para amaciar a pele das mãos e não gretarem, havia quem usasse brilhantina do cabelo, azeite, velas de sebo da Holanda ou vaselina. Hoje em dia usa-se óleo para bebés ou creme para as mãos.

      Quando se lavavam paredes, usava-se sabão de seda ou sabão macaco.

Pé de pombo – andar descalço.

Dar um bigode – quem acabava o trabalho primeiro que o outro.

Formiga branca – como eram conhecidos os estucadores.

     Os estucadores vestiam-se de branco de cabeça aos pés, usando sapatilhas de atilho com solas de corda e na cabeça um boné ou um lenço atado nas quatro pontas.”

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No texto, procurou-se manter a linguagem utilizada pelo narrador.

Pesquisa e fotografias

Associação de Defesa

do Património de Sintra

 

 

11 Almagrave - vermelho menos vivo que o óxido de ferro.

12 Massa estendida e dobrada - massa sempre aplicada com talocha duas vezes e depois passadas só à talocha para

      regularizar e fazer.

 

 

Figura 7

 

nº. 1 molde entalado

nº. 2 molde de tabelas

nº. 3 moldura em gesso

 

Figura 6 - Régua de cantos

 

Figura 7 - Faixa fingida a fresco

 

Figura 7 - Faixa fingida a fresco

 

 

      Este artigo foi facultado à Junta de Freguesia de Stª. Maria e S. Miguel, que o publicou no seu boletim do 2º Semestre de 2006. Por tal facto queremos expressar a nossa gratidão à Junta de Freguesia, que assim contribuiu para a divulgação de um património de ofícios cuja memória não se deve perder.

 

Bem hajam !

 

 

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