Associação de Defesa do Património de Sintra

 

A FLORESTA DA SERRA DE SINTRA

 

 

 

 

Originada por uma erupção magmática ocorrida há cerca de 80 milhões de anos, a Serra de Sintra destaca-se da plataforma da Estremadura, elevando-se junto ao litoral, no extremo ocidental da Europa.

 

O seu relevo, perpendicular ao oceano, intercepta os ventos marítimos que são obrigados a subir, condensando a humidade que transportam, gerando um microclima muito temperado e húmido, favorável ao desenvolvimento de um exuberante manto vegetal. A frequência dos nevoeiros com as consequentes precipitações nocturnas é um fenómeno tanto mais significativo quanto ocorre sobretudo durante o Verão, suavizando-o e reduzindo as carências hídricas da vegetação.

 

Os solos, geralmente graníticos, frescos e leves, muito ricos em matéria orgânica, permitiram que os elementos acidófilos da flora autóctone se desenvolvessem a par com plantas de maior alcalinidade ou mesmo calcícolas, dos terrenos calcários que rodeiam a Serra, originando uma elevada biodiversidade vegetal.

 

Também o acidentado do relevo, com vales profundamente entalhados e cristas rochosas, grandes contrastes térmicos, de humidade, de exposição e abrigo, e de profundidade do solo, diferenciando um acentuado gradiente de habitats, contribui para essa diversidade florística e para o carácter único da Serra de Sintra no panorama geográfico, paisagístico e florestal português.

 

Ocupada sucessivamente pelos vários povos que dominaram o nosso território, a presença do homem é muito antiga na Serra de Sintra conforme testemunham numerosos restos arqueológicos.

 

Desde o início da nacionalidade que a beleza da paisagem, a suavidade do clima e a frescura dos bosques, atraíram reis e, com eles, aristocratas, escritores e artistas. O isolamento resultante da sua natureza agreste atraiu também monges e ascetas que nela procuraram refúgio e maior proximidade a Deus, deixando velhos conventos, cruzeiros e ermidas.

 

A abundância de água na Serra, possibilitando uma fácil irrigação, favoreceu o povoamento e desenvolvimento da agricultura na sua base. Sintra tornou-se assim rica em quintas e palácios, cercados de jardins, hortas e pomares, onde a água murmura permanentemente nas fontes e tanques.

 

A ocupação humana da Serra veio alterar e reduzir progressivamente a sua floresta primitiva, implantada após a última glaciação e dominada por carvalhos, atingindo-se o máximo de desarborização em finais do século XVllI, dela sobrando, apenas, indivíduos dispersos e alguns pequenos bosques, pouco degradados, que constituem verdadeiras relíquias de grande valor cultural e científico.

 

Há notícia de, ainda nos séculos XIV e XV se caçarem ursos e veados e de crescerem trutas nas ribeiras da Serra de Sintra, o que pressupõe um coberto florestal ainda abundante e muito denso que daria abrigo a numerosas espécies de animais já desaparecidas e um sítio mais provido do que hoje de águas límpidas e bem oxigenadas, como aquelas que as trutas exigem.

 

A floresta de Sintra, rica em espécies mediterrânicas e atlânticas, marca a transição entre a vegetação do norte e do sul do país, estimando-se em 901 o número de plantas autóctones, das quais 7 são endemismos locais.

 

Das suas antigas associações vegetais, a do carvalho negral (Quercus pyrenaica) teria tido significativa expansão cobrindo os cumes rochosos e as vertentes mais desabrigadas. Nas encostas sombrias e húmidas, viradas a norte e nalguns locais mais abrigados, vivia a associação tipicamente atlântica do carvalho alvarinho (Quercus robur). A associação mais termófila do carvalho cerquinho (Quercus faginea) teria tido a maior ocupação incluindo os terrenos calcários à volta da Serra, sendo grande a abundância de sobreiros (Quercus suber) nas zonas mais baixas e quentes.

 

A ocorrência de velhos indivíduos de samouco (Myrica faya), do pequeno Daphne laureola e dos fetos Davallia canariensis, Asplenium hemionitis, Dryopteris guanchica e Woodwardia radicans e a visível expansão do vinhático (Persea indica) e do til (Ocotea foetens), constituem indícios de sobrevivência de uma possível associação de carácter macaronésico.

 

Destas associações faziam parte um grande número de espécies das quais, ainda hoje, se encontram indivíduos um pouco por toda a Serra: o bordo (Acer pseudoplatanus), a aveleira (Corylus avellana), o azevinho (Ilex aquifolium), o pilriteiro (Crataegus monogyna), o sanguinho das sebes (Rhamnus alaternus), o azereiro (Prunus lusitanica), o loureiro (Laurus nobilis), o medronheiro (Arbutus unedo), o ademo (Phillyrea latifolia), o folhado (Viburnum tinus), o carrasco (Quercus coccifera), a murta (Myrtus communis) e a gilbardeira (Ruscus aculeatus).

 

Nos vales, junto às linhas de água, sobrevivem restos de formações ripícolas com salgueiros (Salix alba e S. atrocinerea), freixos (Fraxinus angustifolia), amieiros (Alnus glutinosa), ulmeiros (Ulmus minor), choupos (Populus alba e P. nigra), sabugueiros (Sambucus nigra) e sanguinhos de água (Frangula alnus).

 

Notável é também a vegetação criptogâmica, mais exigente em frescura e humidade do que a superior, abundando os musgos, líquenes e fetos, encontrando os fungos habitats privilegiados nos andares superiores da Serra.

 

Os fetos espreitam das fendas das rochas e abrem as suas folhas nos locais mais sombrios; os penedos e os muros estão revestidos de característica vegetação rupícola; é grande a abundância de musgos e líquenes e de plantas epífitas e trepadeiras que cobrem troncos e ramos, tudo envolvendo num espesso manto verde.

 

Com a descoberta de novas rotas marítimas e de novos continentes, começou a introdução de plantas exóticas na Serra de Sintra, ciclo esse provavelmente iniciado pelo Vice-Rei da Índia, D. João de Castro, que, cansado e desencantado do curso da política da época, se retirou para o seu refúgio da Penha Verde, onde abatia árvores de fruto para em seu lugar plantar arvoredos silvestres e estéreis. Segundo alguns autores, terá sido D. João de Castro quem trouxe as laranjeiras doces da China e terá introduzido as faias das ilhas (Myrica faya) na Serra de Sintra.

 

No séc. XIX, o romantismo, o despertar do interesse pela natureza e a grande curiosidade científica, levaram à introdução e cultivo de novas espécies que muito enriqueceram os seus parques e jardins e valorizaram a sua paisagem.

 

São particularmente notáveis os Parques da Pena e de Monserrate, mandados plantar, respectivamente, pelo Rei D. Fernando II e pelo rico industrial inglês Francis Cook, nos quais foram introduzidas centenas de espécies provenientes das mais diversas partes do mundo que, em parte, estão agrupadas por talhões consoante a família ou o género, ou por origem geográfica, reconstituindo paisagens e ambientes de países distantes, em perfeita harmonia e integração com o meio envolvente e a vegetação autóctone, criando a ilusão de fazerem parte da sua própria natureza.

 

Nestes parques históricos, algumas áreas foram valorizadas com a construção de tanques, fontes, lagos e discretos locais de lazer ao gosto romântico e sobretudo com os arranjos paisagísticos conseguidos com a utilização de espécies de grande valor ornamental como fetos arbóreos, rododendros, azáleas e cameleiras, criando ambientes de grande exotismo e beleza.

 

Além das europeias, os parques são particularmente ricos em espécies provenientes de zonas de outros continentes com um clima semelhante ao nosso, como é o caso das originárias das costas ocidental e oriental da América do Norte, das regiões temperadas da América do Sul, da China e do Japão, da África do Sul, do sul da Austrália e da Nova Zelândia.

 

Muitas das espécies introduzidas, em virtude da plena adaptação ao meio local, naturalizaram-se, tomando-se sub-espontâneas, entrando em competição com as plantas nativas.

 

A primeira referência à existência de pinheiro bravo (Pinus pinaster) na Serra de Sintra, foi efectuada em 1841 pelo naturalista austríaco Friedrich Welwitsch, tendo-se o seu cultivo expandido a partir dessa data, com grande incremento já no século XX com a arborização dos Baldios Municipais de Sintra e Cascais, submetidos ao Regime Florestal em 1919 e 1929, respectivamente. Parte desta área foi posteriormente rearborizada com cedro do Buçaco (Cupressus lusitanica), por o pinheiro bravo não se ter adaptado aos solos básicos de algumas zonas envolventes do núcleo sienítico da Serra.

 

Toda a arborização realizada a partir do século XIX e os núcleos de vegetação primitiva existentes foram gravemente afectados ou destruídos pelo grande incêndio de Setembro de 1966 que lavrou durante uma semana, tendo a degradação do património florestal e florístico da Serra nunca parado desde essa altura.

 

Apesar da abundante regeneração natural do pinhal que então se verificou, uma das consequências, imediatas daquele incêndio foi a forte propagação de algumas invasoras lenhos as como a Austrália (Acácia melanoxylon), a acácia de espigas (Acácia longifolia), a mimosa (Acacia dealbata) e a oliveirinha (Hakea salicifolia), espécies pirófitas, exóticas, de crescimento rápido e muito competitivas que estão naturalmente preparadas para colonizar imediatamente os terrenos ardidos e que teriam sido introduzidas em Sintra como ornamentais ou plantas de colecção, no século XIX.

 

Também os povoamentos de eucalipto (Eucalyptus globulus) que ocupam grande parte da vertente Sul da Serra, nomeadamente nas Tapadas do Saldanha e de Valle Flor, teriam sido instalados na sequência desse incêndio.

 

Com a escassez de mão-de-obra e o aumento dos custos de manutenção e das operações florestais, foi-se agravando a falta de conservação e o abandono das propriedades, nunca tendo sido efectuado o devido aproveitamento e a condução da regeneração natural das espécies com interesse ambiental e florestal.

 

Em 1979, 1981 e 1989 ocorreram novamente incêndios de grande dimensão, que afectaram, sobretudo, os sectores ocidental e meridional da Serra, agravando o problema da infestação de invasoras lenhos as e da degradação generalizada do coberto florestal.

 

Após o incêndio de 1989, os Serviços Florestais ainda fizeram um grande esforço de rearborização nos cerca de 400 ha ardidos do Perímetro Florestal da Serra de Sintra / Baldios Municipais, recorrendo a um leque muito diversificado de espécies, sobretudo de folhosas como carvalhos nativos e resinosas como o pinheiro manso (Pinus pinea) e o cedro do Buçaco, estando a maior parte do arvoredo então plantado perdido, por nítido insucesso das espécies mais exigentes e falta dos necessários trabalhos complementares de instalação e limpeza e pela forte concorrência das invasoras lenhosas que rapidamente dominam e abafam a restante vegetação.

 

A maior parte da Serra perdeu já a sua antiga riqueza vegetal, encontrando-se actualmente coberta de matos e povoamentos degradados com densidades excessivas, grande concentração de material lenhoso e acumulação de combustíveis, com um elevado risco potencial de incêndio.

 

Além das espécies já citadas, no que respeita ás invasoras lenhosas exóticas, todas de origem australiana, há que acrescentar o incenso (Pittosporum undulatum), espécie de sombra que se alastra sob o coberto dos povoamentos, revestindo actualmente quase todo o Parque da Pena bem como as poucas áreas que não arderam em 1966 e mesmo os acaciais originados após esse incêndio.

 

Estas invasoras exóticas ocupam já uma grande parte da Serra de Sintra constituindo autênticas pragas de difícil controlo e erradicação, que vão aumentando sucessivamente a sua área de ocupação, dominando e destruindo toda a restante vegetação e os respectivos nichos ecológicos, causando graves prejuízos ambientais para os quais não há ainda uma forma expedita, económica e eficaz de resolução.

 

Tendo a Serra de Sintra, pelos seus valores ambientais, culturais, científicos e paisagísticos, sido incluída no Parque Natural de Sintra-Cascais e na área inscrita e zona tampão da Paisagem Cultural classificada pela Unesco tomo Património da Humanidade, há que fomentar medidas, desenvolver programas e acções e disponibilizar recursos financeiros que levem à reabilitação e recuperação do seu património florestal, público e privado, sendo fundamental a sua valorização e a diversificação do coberto, sobretudo pela reconversão de áreas degradadas em povoamentos de folhosas nativas ou de outras espécies que ofereçam maior resistência à propagação dos incêndios.

 

Há igualmente que tomar medidas urgentes de prevenção do risco de incêndio como constituir faixas de gestão de combustíveis ou com espécies mais resistentes ao fogo ao longo das estradas e caminhos, das extremas das propriedades ou de linhas notáveis do relevo.

 

É urgente dar-se inicio a acções plurianuais de controlo das invasoras lenhosas, que deverão ser monitorizadas, devendo incidir sobretudo em manchas mais pequenas ou isoladas, ou dominadas por outras espécies, onde há maior possibilidade de sucesso.

 

Há que disciplinar o uso público e recreativo criando espaços devidamente infraestruturados para acolhimento e estadia nos locais mais adequados e desenvolver e melhorar a rede de circuitos sinalizados para passeio ou desporto na natureza.

 

Por fim há que assegurar a defesa de sítios de grande valor ambiental e cultural, que em caso de incêndio representam perdas incalculáveis, como o Convento de Santa Cruz da Serra e a sua cerca com o seu bosque climácico que é a mais bem conservada relíquia do coberto florestal primitivo da Serra, bem como algumas manchas fragmentadas de carvalhal na sua parte ocidental, a mata da Quinta da Penha verde que se prolonga para algumas propriedades vizinhas, todo o flanco sul do Parque da Pena que é extremamente vulnerável e o Parque de Monserrate que já foi atingido pelo incêndio de 1966.

 

Rui Victorino Queirós

(Eng.º Silvicultor)

 

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